sábado, 13 de março de 2010

História de Vida

Gêmeas xifópagas
A bela e comovente história das gêmeas xifópagas (ou siamesas) Kendra e Maliyah Herrin.
Por Por Cathy Free

Numa clínica em Salt Lake City, nos Estados Unidos, a técnica de ultrassonografia movia o transdutor em círculos lentos sobre a barriga de Erin Herrin. Aos 20 anos e já mãe de uma menina de 2, ela estava com 18 semanas da segunda gestação.

“Uau! Está vendo isso?”, disse a técnica, focalizando um par de imagenzinhas palpitantes. “Dois corações! Parabéns, você vai ter gêmeos!” Erin não ficou muito surpresa; sentira chutes a mais, embora a obstetra só conseguisse ouvir um batimento cardíaco nos primeiros exames. Ela sorriu para o marido, Jake, 21 anos, que estava ao lado segurando-lhe a mão. Então a técnica interrompeu o exame.“Esperem um minutinho”, disse ela. “Quero que o radiologista veja isso.” Os Herrins esperaram ansiosos até que o especialista chegou e estudou as imagens da ultrassonografia.

“Parece que vocês terão gêmeas xifópagas”, disse ele, como se pedisse desculpas. “Infelizmente, não sei lhes dizer mais nada.” E marcou uma consulta com um perinatologista na segunda-feira – dali a longos quatro dias.

Na volta para casa, Erin fez uma lista preliminar de perguntas sobre as suas futuras gêmeas: Por onde os bebês estão ligados? Podem ser separados? Terão uma vida normal, mesmo sendo xifópagas? Vão sobreviver? Jake, gerente de redes de computadores, tentou tranquilizá-la: “Não vamos entrar em pânico”, disse. “Talvez só estejam presas por um pedacinho de pele e dê para separar.”

Mas as gêmeas tinham muito mais em comum. Se chegassem a nascer, a única esperança de independência uma da outra e de alguém que cuidasse delas seria uma cirurgia de complexidade quase inimaginável. De fato, seria a primeira operação daquele tipo.

Gemêos Xifópagos
Quando chegaram em casa, naquele dia de outono de 2001, Jake e Erin pesquisaram sobre gêmeos xifópagos na Internet. Aprenderam que, em uma de cada 100 mil gestações, o óvulo fertilizado não se divide inteiramente em dois gêmeos idênticos e forma dois fetos unidos em algum ponto do corpo. Por motivos desconhecidos, cerca de 70% deles são meninas, e, na maioria, os órgãos internos comuns às duas são gravemente deformados. Até 60% dos gêmeos xifópagos nascem mortos; dos que sobrevivem ao parto, 35% vivem um dia apenas. O porcentual geral de sobrevivência é de 25%.

O primeiro caso de separação bem-sucedida ocorreu na Suíça, em 1689, um caso simples de gêmeos unidos superficialmente. Mas essas cirurgias continuaram quase inexistentes até que a técnica foi aperfeiçoada na década de 1950. Desde então, algumas dezenas de gêmeos foram separados no mundo todo. O porcentual de sobrevivência, dependendo de onde os gêmeos estão ligados, varia de 82%, no caso de uma ligação apenas pelo abdome, a zero, quando os dois têm o mesmo coração.

No consultório do perinatologista, o casal soube que suas gêmeas estavam unidas frontalmente, pelo abdome e pela pelve. Tinham duas pernas (cada gêmea controlava uma), um só fígado e um grande intestino. Para ter os bebês, Erin precisaria de uma grande incisão cesariana vertical, que talvez resultasse em muita perda de sangue. O médico disse que, por causa das graves complicações, Erin poria sua vida em risco se resolvesse continuar com a gravidez.

A orientação religiosa mórmon da família permite o aborto em alguns casos: quando o feto tem defeitos que impeçam sua sobrevivência após o parto, por exemplo, ou quando a vida da mãe corre perigo. Mas Erin disse que não era isso o que queria. Assim, o médico encaminhou o casal à Dra. Rebecka Meyers, chefe de cirurgia pediátrica do Centro Médico Infantil de Salt Lake City. Na primeira consulta, a Dra. Meyers disse aos Herrins que as gêmeas tinham sinais vitais fortes e boa probabilidade de chegar a termo.

“Jake e eu nos entreolhamos e vimos que tínhamos de ir em frente”, lembra Erin. “Não tivemos dúvidas.”



Gestação e nascimento das gêmeas
Na 26-ª semana de gravidez, Erin começou a perder sangue, e pouco depois a bolsa d’água se rompeu. Os médicos conseguiram evitar o aborto, mas mantiveram-na no hospital sob repouso absoluto. Deitada sempre de costas, dia após dia, ela mal ousava pensar em como seria depois do nascimento das crianças.

Em 26 de fevereiro de 2002, Kendra e Maliyah nasceram depois de sete meses de gestação. Juntas, pesavam 2,83 kg. “Eram lindas”, diz Jake. “Mas estavam grudadas.”
Pequenas demais para sobreviver por si sós, as gêmeas foram levadas para a unidade de terapia intensiva do hospital. A prematuridade não era o único problema. Quando tinham 3 dias de vida, os exames mostraram que só um dos três rins das meninas, o do lado de Kendra, funcionava. Ninguém sabia quanto tempo o órgão aguentaria as gêmeas, mas com o passar das semanas o estado das duas se estabilizou. Depois de dois meses na UTI, as meninas ficaram suficientemente fortes para ir para casa, e os pais começaram a pensar no futuro.

A separação era o mais importante. A melhor idade para separar gêmeos xifópagos é entre 6 e 12 meses, o suficiente para suportarem a cirurgia e bastante cedo para evitar problemas psicológicos, então o casal achou que as meninas aprenderiam a andar com uma perna só, com o auxílio de próteses. “Sabíamos que a reabilitação seria cara e complicada”, diz Erin. “Mas encontramos uma família em Seattle cujas filhas tinham passado pelas mesmas dificuldades e estavam muito bem.”

Na maioria dos aspectos, Kendra e Maliyah eram boas candidatas à operação. Em gêmeos xifópagos como as duas, o nível de sucesso era de uns 63%.

Mas quando Erin e Jake contaram suas esperanças à Dra. Meyers, ela gentilmente os desencorajou. Ninguém jamais havia tentado separar gêmeos que dependessem de um só rim, explicou. Essa operação traria dificuldades tremendas para Maliyah, que não tinha esse órgão. Se as meninas fossem separadas, ela precisaria de hemodiálise até recuperar-se da cirurgia, e depois teria de fazer um transplante de rim.

– Eu doaria meus dois rins, se isso a ajudasse – disse Erin.

A Dra. Meyers garantiu que um só bastaria.

– Você talvez seja a doadora perfeita – disse ela.

Bebês não suportam bem a diálise, e o corpo de Maliyah era pequeno demais para aceitar um órgão adulto.

– Quando ela terá tamanho suficiente? – perguntou Jake.

A resposta da médica partiu o coração do casal:

– Vamos ver como ela estará daqui a quatro ou cinco anos.

A rotina após o nascimento

Se cuidar de gêmeos recém-nascidos já é trabalhoso, cuidar de dois bebês com a mesma parte de baixo do corpo é mais difícil ainda.

As tarefas cotidianas eram assombrosas. As meninas precisaram de tubos de alimentação durante vários meses. Tinham dificuldade de dormir porque uma rolava por cima da outra ou a atingia com a mão. Quando uma delas se resfriava, a outra também adoecia.
Passaram o primeiro aniversário na UTI, com infecção respiratória. Em cada crise, Erin temia estar abandonando Courtney, a filha mais velha.

Mas a família se ajustou. Erin descobriu um jeito de arrumar as gêmeas no berço para que dormissem melhor. Fez roupas cortando e juntando outras peças. Quando as meninas não couberam mais numa cadeirinha comum no carro, o casal mandou fazer outra sob medida. Amigos e parentes ajudavam nas tarefas e nos cuidados com as duas.

Não demorou para que as gêmeas descobrissem que conseguiam se deslocar pulando de costas. Aprenderam a subir escadas, a se vestir e a pular na cama elástica. Certo dia, com 3 anos, Kendra gritou para Erin: “Olhe para nós, mãe!” As meninas tinham se posto de pé: algo que os médicos haviam dito ser impossível sem cirurgia.

Nessa época, os Herrins já sabiam que ter as gêmeas fora a decisão correta. O casal atravessara momentos difíceis após o nascimento de Courtney; chegaram a morar separados por algumas semanas. Agora estavam mais próximos do que nunca. Jake diz: “Percebemos que Kendra e Maliyah tinham nos deixado mais fortes.”

Quando o quarto aniversário das meninas se aproximou, os pais mal podiam esperar o dia em que pudessem ser separadas. Então, aconteceu algo ainda mais improvável que ter gêmeos xifópagos: como uma em cada sete milhões de mães, Erin engravidou de gêmeos outra vez. Não poderia doar o rim a Maliyah até se recuperar do parto de Austin e Justin. (Outros se ofereceram para doar, mas Erin era a melhor opção.) Ela e Jake começaram a ter dúvidas sobre a cirurgia. Kendra e Maliyah estavam aprendendo a usar o andador. Iam tão bem que às vezes o seu estado parecia mais uma bênção do que uma maldição.

“Eu sabia que sentiria falta de dar banho nas duas, de pô-las para dormir juntas”, diz Erin. “Eu as achava perfeitas do jeito que eram.”



Prós e contras da operação para separar as gêmeas xifópagas
Também era preciso levar em conta o trauma da separação. A Dra. Meyers garantiu ao casal que as filhas eram suficientemente fortes para sobreviver à operação inicial. Entretanto, Maliyah teria de fazer hemodiálise durante meses até se recuperar o bastante para receber o rim da mãe. Mais operações seriam necessárias para reconstruir o corpo das gêmeas. Pernas artificiais ajudariam a restaurar a mobilidade, mas, como as meninas não teriam o osso superior da perna, no qual se prendem as próteses comuns, os únicos aparelhos disponíveis eram grosseiros e desajeitados. Seria realmente justo ou necessário fazê-las passar por tantas dificuldades?

A Dra. Meyers não sabia dizer ao certo. Ainda assim, explicou a Erin e Jake que não fazer nada também era arriscado.

“Até agora, as meninas viveram bem com um só rim”, disse ela. “Mas, se começarem a crescer depressa, o órgão ficará sobrecarregado.”

Dilacerado, o casal rezou junto. Consultaram psicólogos infantis e especialistas em ética médica. Pediram conselhos a um grupo de apoio para pais de gêmeos xifópagos na Internet, com integrantes nos Estados Unidos e na Austrália. Mas, como diz Jake, ainda se sentiam sós, “como se fôssemos as únicas pessoas do mundo a passar por aquilo”.
Embora os Herrins não quisessem sobrecarregar as meninas com a decisão, as gêmeas acabaram decidindo.

“Quer dizer que vou poder brincar no computador enquanto Maliyah brinca de Barbie no outro quarto?”, perguntou Kendra, num dia em que Erin puxou o assunto. “E vamos poder dormir em camas separadas?”, acrescentou Maliyah.
Erin fez que sim, e as gêmeas riram, alegres.

O dia do corte, como diziam as meninas, foi marcado: 7 de agosto de 2006. Dois meses antes da cirurgia, Kendra e Maliyah foram internadas no Centro Infantil, onde os médicos inseriram em seu tronco balões expansores, que a cada semana recebiam um pouco mais de solução salina. Esses artefatos, muito usados em cirurgia reconstrutora, esticavam a pele das meninas a fim de que ela se dilatasse o suficiente para cobrir os tecidos que ficariam expostos com a separação. Para reduzir o desconforto, as gêmeas dormiam num colchão de areia macia.

Prepará-las psicologicamente também era importante. Erin fez uma corrente comprida de papel, para que pudessem fazer a contagem regressiva do grande dia. Os orientadores do hospital deram a cada uma um par de bonecas costuradas, que poderiam separar quando se sentissem prontas. Kendra separou as dela na mesma hora; Maliyah esperou até pouco antes da cirurgia.

Às 7 da manhã de 7 de agosto, as gêmeas foram levadas para a sala de cirurgia. Pareciam calmas, alegres até. A equipe do hospital decorara o corredor com cartazes que reforçavam a individualidade das meninas: Quem gosta de lagartas? Maliyah. Quem gosta de borboletas? Kendra. A maca ia parando em cada cartaz, transformando o caminho num tipo de caça ao tesouro. Entretanto, no último instante as duas começaram a chorar: “Não quero ir! Queremos ficar com vocês!”

Os pais as tranquilizaram, escondendo a própria ansiedade.

“Deixá-las ir”, diz Erin, “foi a coisa mais difícil que já fiz.”

“Separar gêmeos xifópagos nunca é fácil”, diz o Dr. Michael Matlak, um dos cirurgiões que operaram Kendra e Maliyah. Em cada caso a união é diferente, e sempre há a possibilidade de algo dar fatalmente errado.

A equipe tinha seis cirurgiões, cinco outros especialistas e mais de 25 enfermeiras e técnicos. Com a Dra. Mey­ers atuando como diretora, levaram 16 horas para dividir o tronco das meninas, refazer o sistema circulatório e dar, a cada uma, parte do fígado e dos intestinos. Então, pouco depois da meia-noite, a equipe se dividiu em dois grupos: o de Maliyah, encabeçado pelo Dr. Bradford Rockwell, e o de Kendra, pelo Dr. Matlak.

“Meu Deus, o que fizemos?!”, exclamou o Dr. Matlak quando viu o rasgo imenso onde antes as gêmeas estavam unidas. O cirurgião pediátrico já realizara meia dúzia de separações, mas nunca tivera de enfrentar cortes tão grandes como aqueles. Não tinha certeza de que houvesse pele suficiente em Kendra para cobrir o abismo que se abria em metade do seu corpo.

Os colegas calaram-se e o Dr. Matlak saiu para se recompor. Numa sala vizinha, encontrou os pais das gêmeas reunidos à família. O cirurgião lhes contou sua preocupação com Kendra, e o grupo começou a orar. O Dr. Matlak voltou à sala de cirurgia com as dúvidas aliviadas.

“Tudo bem”, disse ele, ao preparar-se para levar Kendra para a sala ao lado. “Vamos fechá-la.”

Nas dez horas seguintes, as duas equipes trabalharam ao mesmo tempo para reconstruir a pelve e a parede abdominal de cada menina. Houve pele suficiente para cobrir as incisões das duas; no caso de Kendra, foi por pouco. Às 9h30 da manhã seguinte, as gêmeas dormiam na UTI, pela primeira vez em camas separadas. As enfermeiras juntaram as camas, para que quando acordassem pudessem se dar as mãos.

Quando os Herrins viram as filhas, abraçaram-se e choraram. Os cirurgiões também se emocionaram. O Dr. Matlak foi para um quarto vazio, onde deu vazão às lágrimas. “Fiquei inundado de alegria e gratidão”, lembra.

A Dra. Meyers verificou os sinais vitais das meninas; espantou-se ao ver que a pressão arterial e os batimentos cardíacos ainda eram idênticos.

“Os gêmeos têm uma ligação especial”, disse ela. “Não há dúvida disso.”
Courtney, que tinha 6 anos, ficou menos contente com o resultado. “Ma­mãe, papai, por que separaram as duas? Eu gostava delas como eram!”



Pós operatório e recuperação

O sofrimento das gêmeas não tinha acabado. Ficaram mais 12 semanas no hospital. Maliyah tinha de fazer hemodiálise três dias por semana, o que a deixava tão mal que tinha alucinações. Kendra teve de ser operada por causa de uma obstrução intestinal. A pele em volta das incisões das duas começou a se retrair e exigiu tratamento com aspiradores especiais que sugam os tecidos mortos e estimulam a regeneração.

Em abril de 2007, quando Maliyah já poderia receber o rim da mãe, o casal estava emocionalmente esgotado.

“As meninas tinham chegado à beira da morte e voltado, e a família toda fora junto. Tínhamos de dar o último passo, mas foi dificílimo”, diz Erin.

O transplante foi bem-sucedido, mas só o tempo responderá à pergunta que persegue os Herrins: todo o sofrimento das gêmeas xifópagas valeu a pena?



Uma nova vida se inicia para as gêmeas: o valor da individualidade

– Kendra, depressa! – grita Maliyah, batucando o teclado no escritório dos pais. – Vou lhe mandar um e-mail!Subindo numa cadeira próxima, a irmã gêmea olha o outro computador. “Querida Kendra”, diz a mensagem na caixa de entrada, “você é a minha melhor amiga. Com amor, Maliyah.”Ao digitar a resposta, Kendra dá uma olhada na irmã.
– Não pode olhar agora – avisa Maliyah. – É segredo.

As gêmeas de 6 anos ainda precisam de mais cirurgias para corrigir a coluna (que formava um V enquanto estavam unidas), mas, em quase todos os aspectos, estão indo muito bem. Brincam com outras crianças, fazem aula de nata&ção e já começaram a estudar. Os pais esperam em breve conseguir-lhes pernas meccânicas. Enquanto isso, as meninas estão aprendendo a usar muletas, embora Maliyah ainda prefira andar sentada pelo chão.
As gêmeas não esqueceram os dias em que estavam unidas.
“Às vezes fingimos que ainda estamos juntas”, diz Kendra. “Mas agora podemos fazer mais coisas.”
Podem guardar segredos uma da outra. Podem brincar de esconde-esconde com os irmãos e Courtney, que percebeu que a separação das irmãs, na verdade, aumentou sua diversão. Podem decorar seus quartos e escolher fantasias diferentes para a festa de Halloween.
“Coisinhas assim fazem uma diferença enorme”, diz Erin. “Quero que elas cresçam achando que tudo é possível.”
Entretanto, num ponto importante as meninas não mudaram. Algumas noites, quando Erin e Jake vão ver como estão, descobrem que uma delas foi para o quarto da outra. Kendra e Maliyah estão aconchegadas na mesma cama, lado a lado, como desde o princípio estiveram.


Matéria da Revista Seleções

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