terça-feira, 16 de março de 2010

Histórias de Vida


Tráfico de Crianças
Vendida pelos pais e contrabandeada para os Estados Unidos, Shyima Hall foi mantida presa durante dois anos como escrava. Por Por Mary A. Fischer

Como toda adolescente, Shyima Hall esquece de arrumar a cama e reclama na hora de cumprir suas duas tarefas: passar o aspirador e limpar o aquário. Em Orange County, Califórnia, no lar que divide com os pais adotivos e cinco irmãos, a jovem de 18 anos conversa pelo celular deitada no sofá. Usa jeans de cintura baixa e as unhas estão pintadas de rosa. Ela tenta conciliar a agenda cheia – emprego de meio expediente, deveres de casa, acampamento no fim de semana – como se quisesse compensar o tempo perdido.

E é isso mesmo. Em 2007, Shyima, nascida em Alexandria, no Egito, encerrou em sua vida um capítulo que teria preferido jamais escrever. Tudo começou em 2000, quando seus pais, muito pobres, venderam-na a um casal rico no Cairo. O casal se mudou para os Estados Unidos e conseguiu fazer com que a menina de 10 anos entrasse ilegalmente no país para trabalhar na casa deles.

Tráfico e exploração infantil



De acordo com o Departamento de Saúde e Serviços Hu­manos dos Estados Unidos, o tráfico de pessoas é o tipo de crime que mais cresce no mun­­­­do. Até 800 mil pessoas são traficadas por ano pelas fronteiras internacionais; os Estados Unidos são um destino comum, recebendo até 17.500 todo ano para serem exploradas sexualmente ou como mão-de-obra. Shyima, acostumada a dificuldades, ficou nesta última categoria. Era uma dos 11 filhos de pais paupérrimos e foi criada numa casa com um banheiro só que abrigava três famílias. Ela, os pais e os irmãos dormiam em um quarto, sobre cobertores no chão. O pai costumava sumir durante semanas. Shyima conta que “quando estava em casa, ele batia na gente”.

Ela nunca ia à escola e o futuro não era nada promissor. Ainda assim, tinha esperanças. Como contou anos depois no tribunal, “lá havia felicidade. Eu tinha quem cuidasse de mim”.

Aos 8 anos, ela foi morar com um casal de 30 e poucos anos, Abdel-Nasser Youssef Ibrahim e a mulher, Amal Ahmed Ewis-Abd Motelib. A irmã mais velha de Shyima trabalhara para eles como empregada doméstica, mas o casal a demitiu, acusando-a de furtar dinheiro. Como par­te do acordo que o casal fez com os pais de Shyima, ela foi obrigada a rtrabalhar como empregada doméstica, para substituir a irmã.

Dois anos depois, Ibrahim e Motelib decidiram se mudar para os Estados Unidos com os cinco filhos para abrir uma empresa de importação e exportação. Shyima não queria ir. Hoje ela diz que Ibrahim lhe falou que ela não tinha opção. Shyima se lembra de estar perto da cozinha, ouvindo os patrões conversarem com seus pais.

“Escutei a negociação e aí meus pais me entregaram a essa gente em troca de 30 dólares por mês”, contou.

Escravização infantil


Shyima entrou nos Estados Unidos com um visto de turista, válido por seis meses, obtido de forma ilegal, e passou a morar na casa da família, de dois andares, num condomínio fechado em Irvine. Quando não estava trabalhando, ficava restrita a uma parte da garagem, com 3,5 por 2,5 metros, sem janelas, sem ar condicionado nem aquecimento. Ela diz que às vezes a família a trancava lá. A mobília da senzala: um colchão sujo, um abajur e uma mesinha. Shyima guardava as roupas na mala.

Rotina de uma mini-escrava: Todo dia acordava às seis da manhã, no mesmo horário dos filhos gêmeos do casal, que tinham 6 anos. Obedecia às ordens de todos, até mesmo das três outras filhas do casal, de 11, 13 e 15 anos. Cozinhava, servia à mesa, lavava a louça, fazia as camas, trocava os lençóis, lavava e passava a roupa, tirava o pó, varria, aspirava e passava pano úmido no chão. Era comum trabalhar até meia-noite. Certo dia, quando tentou lavar a própria roupa, Motelib a impediu: “Ela me disse que eu não podia pôr minhas roupas na máquina de lavar porque eram mais sujas que as deles.”

Desde então, Shyima passou a lavar suas roupas num balde de plástico, que guardava próximo ao colchão, e a pendurá-las para secar nu­ma grade de metal perto das latas de lixo.

Motelib e Ibrahim batiam em Shyima, mas o isolamento e as agressões verbais eram piores. “Eles me chamavam de estúpida, diziam que eu não era nada”, conta. Shyima comia sozinha e não podia frequentar a escola nem sair da casa sem que Motelib ou Ibrahim a escoltassem. O casal ordenava-lhe que não contasse nada a ninguém sobre a situação: “Eles me ameaçaram, dizendo que a polícia me prenderia porque eu era ilegal.”

Embora nunca admitisse ter saudades da mãe, chorou abertamente na frente de Motelib e Ibrahim quando teve uma forte gripe. “Mesmo doente, tive de trabalhar. Não me deram nem remédio.” À noite, exausta e sozinha, Shyima fitava a escuridão. Ibrahim lhe tirara o passaporte e ela temia ficar presa para sempre. Quando fez 12 anos, não houve festa. A menina passou o aniversário fazendo o serviço de casa.

Denúncia anônima

Seis meses depois, na manhã de 9 de abril de 2002, Carole Chen, assistente social do Serviço de Proteção à Criança de Orange County, atendeu a um chamado anônimo (supostamen­te de um vizinho do casal) que denunciava um caso de agressão infantil. A pessoa disse que uma menina morava na garagem de uma casa, e trabalhava como empregada sem ir à escola. Chen, junto de Tracy Jacobson, investigadora da polícia de Irvine, bateu à porta de Ibrahim. Quando ele atendeu, Jacobson perguntou quem mais morava na casa. Ibrahim citou a mulher e os cinco filhos. “Há outras crianças?”, pressionou a policial. Ibrahim admitiu que havia uma menina de 12 anos. Afirmou que era parente distante. “Posso conversar com ela?”, perguntou Jacobson.

Fazendo faxina no andar de cima, Shyima não sabia que a salvação estava a uma distância mínima. Ibrahim chamou-a em árabe e disse-lhe que descesse e negasse que trabalhava para eles. Malvestida, com uma camiseta marrom e calças largas, ela correu até a porta.

Chen, que percebeu que as mãos da menina estavam vermelhas e machucadas, chamou um tradutor pelo celular. Shyima disse ao tradutor que estava no país há dois anos e nunca fora à escola.

Jacobson pôs a menina sob custódia preventiva. No ban­co de trás do carro da polícia, a caminho de um lar coletivo para crianças, onde ficaria temporariamente, Shyima rezou para não ter de encarar de novo seus captores.

“Ela era incrível, uma criança muito forte”, lembra a policial. “Nunca chorou. Gostou de ficar sob custódia, ao contrário das outras crianças, porque assim se sentia segura.”

Dali a algumas horas, Jacobson, munida de um mandado de busca, voltou à casa de Ibrahim com agentes do FBI e do ICE, órgão do governo americano que cuida da imigração e da alfândega. Na garagem, fotografaram o colchão manchado de Shyima. Havia um balde de água com sabão junto a um abajur quebrado e roupas dobradas no chão.

Contrato de escravidão


“Shyima vivia numa situação de contraste total em relação ao restante da família”, revela Jacobson. “Já vi animais de estimação mais bem tratados”, acrescenta Bob Schoch, agente do ICE. Na esperança de justificar o negócio, Ibrahim mostrou aos agentes o contrato escrito à mão e registrado em cartório que ele e os pais de Shyima haviam assinado.

“O contrato dizia que a menina teria de trabalhar para eles durante dez anos”, explica Jacobson, em troca do pagamento de 30 dólares por mês aos pais. O investigador prendeu Ibrahim e Motelib e acusou-os de conspiração, de servidão involuntária, de apropriar-se do trabalho de outra pessoa e de abrigar estrangeiros ilegalmente.

Alforria
No dia do resgate de Shyima, os funcionários da imigração lhe propuseram que escolhesse entre voltar ao Egito ou ficar nos Estados Unidos, morando num lar adotivo. Nervosa e hesitante, Shyima telefonou ao pai, no Egito, e falou de supetão: “Quero ficar aqui.” O pai da menina ficou chateado, mas Shyima já havia decidido: queria começar uma vida nova.

Durante os dois anos seguintes, Shyima morou com duas famílias adotivas. No primeiro lar, aprendeu a falar e a ler em inglês. No segundo, em San José, queriam que fizesse voto estrito de obediência à religião muçulmana e, depois de uma discussão, deixaram-na num lar coletivo local. “Eu só queria ser uma adolescente americana comum”, diz ela.

Logo seu desejo se realizou. Chuck e Jenny Hall, pais de duas meninas e um garoto, tinham acabado de comprar uma casa de quatro quartos em Orange County e decidiram que havia espaço para mais filhos. Depois de adotar uma menina de 15 anos e o sobrinho de Chuck, de 13, estavam dispostos a receber mais um. “No primeiro encontro com Shyima”, diz Chuck, gerente de uma empresa de uniformes, “a gente logo se entendeu. O senso de humor dela era igual ao meu.” Shyima só fez duas perguntas aos possíveis pais: se havia regras na casa e quais os serviços que teria de fazer. A resposta de Chuck: “Tudo é negociável.”

“A regra número um é ir à escola e fazer o dever de casa”, acrescentou Jenny, orientadora educacional. “Va­mos tratá-la como filha. Você vai fazer parte da nossa família.”

Com 15 anos, Shyima já se transformara numa linda mocinha. Mas levou consigo mais do que a mala: “Eu sentia muita raiva”, explica ela. Durante os primeiros seis meses, ela teve dificuldade para dormir e sofreu de angústia. Consultou um terapeuta regularmente e tomou remédios contra depressão. Com o tempo, foi ficando mais autoconfiante. Na escola, fez amigos, teve o primeiro namorado e entrou para a equipe de atletismo. Conseguiu um emprego de meio expediente numa loja de chocolates Godiva e participou de jantares na igreja e lavagens de carro para levantar recursos. Apresentou-se até como orientadora voluntária num acampamento para crianças com baixa autoestima.

Qual a pena para quem explora o trabalho infantil?
Enquanto isso, Ibrahim e Motelib admitiram a culpa ao juiz para evitar o julgamento formal. Na audiência final do processo, em outubro de 2006, Shyima ficou nervosa quando ouviu o pedido de clemência: “O que aconteceu deveu-se à minha ignorância da lei, mas assumo toda a responsabilidade”, disse Ibrahim ao juiz.

Motelib mostrou-se menos arrependida. “Tratei-a como a trataria no Egito. Ficaria contente se ela me dissesse: ‘Não faça isso.’ Aí eu teria mudado meu modo de agir.”

Incapaz de se conter, Shyima pediu permissão para se dirigir ao tribunal: “Motelib é uma mulher adulta, sabe o que é certo e errado”, disse a jovem. “Onde estava o amor quando chegava a minha vez? Eu também não era um ser humano? Enquanto morei com eles, me senti como se não valesse nada. O que eles me fizeram vai me deixar cicatrizes pelo resto da minha vida.”

Ibrahim recebeu uma pena reduzida de três anos de prisão e Motelib, de 22 meses. O casal também teve de pagar a Shyima 76.137 dólares pelo tempo em que trabalhou. Ambos serão deportados para o Egito quanto saírem da cadeia.

Depois da audiência, Shyima comemorou indo comprar um vestido para usar no baile dos ex-alunos da escola secundária. Ela e Jenny escolheram um longo preto e brilhante. Com parte do dinheiro da indenização, Shyima também comprou um laptop, uma câmera fotográfica digital e um carro Nissan Versa novo, e pôs o restante num fundo para custear a universidade.

“Ela tem força de vontade e é independente”, diz Jenny que, com o marido, adotou Shyima legalmente em 2006. No futuro, Shyima diz que gostaria de ser policial, para ajudar os outros. Também quer voltar ao Egito algum dia para visitar os irmãos e as irmãs. Mas, por enquanto, está contente, vivendo o sonho que nunca imaginou realizar: ter a vida de uma adolescente comum.

A escravidão no Brasil


As pesquisadoras Adriana Freitas e Sônia Benevides fazem parte da equi­pe do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que há seis anos promove seminários e debates a fim de contribuir para a erradicação da escravidão no Brasil. Mais de 32 mil trabalhadores foram resgatados entre 1995 e 2008, de acor­do com o Ministério do Trabalho e Emprego.


Escravidão Rural: brasileiros são escravos em fazendas até hoje
Desde o Código Penal de 1940, já havia punição a quem explorasse o trabalho análogo ao de escravo, mas, só a partir da criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) do Ministério do Trabalho e Emprego, em 1995, começou a haver combate permanente a essas práticas que raramente eram noticiadas. Só em 2008, mais de 4,6 mil trabalhadores foram libertados de fazendas onde eram mantidos em condições insalubres, sem carteira assinada, sem equipamentos de proteção individual, e presos a dívidas relativas, muitas vezes, ao transporte, hospedagem e alimentação. Em geral, as dívidas superam o valor a ser recebido, o que os torna cativos. Além da escravidão na área rural – principalmente em atividades de pecuária e cana-de-açúcar –, identificamos casos de escravidão em áreas metropolitanas. Mas pensar que o problema se resolve com a libertação desses trabalhadores é um equívoco, pois, enquanto durarem os fatores que os condicionaram a essa situação – desemprego, baixa escolaridade etc. –, a chance de reincidirem é enorme.


Parte da equipe do GPTEC, em pesquisa para a Organização Internacional do Trabalho, esteve mais de uma vez em propriedades por ocasião da libertação de trabalhadores. Além disso, realizamos pesquisas por meio da leitura de documentos, que constam em nosso acervo, acompanhan­do as notícias relativas ao tema, e com representação nas reuniões da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. Também promovemos seminários, debates e reuniões científicas com especialistas e trabalhadores libertados.

Nenhum comentário: