terça-feira, 9 de março de 2010

Entrevista


O palco na sala de aula

*Professora e diretora de teatro fala sobre os benefícios da arte na formação das crianças

Nascida no sertão da Bahia, "em meio à caatinga", *Eugênia Thereza de Andrade desde criança quis atuar como professora. "Era uma profissão de prestígio", lembra, principalmente para uma menina de família pobre, 11 irmãos. Mal terminou a Escola de Teatro da Universidade da Bahia, em Salvador, veio sozinha e decidida para São Paulo, em 1965, no início da ditadura militar.

Eugênia começou a dar aulas numa época em que não havia livros sobre arte-educação, professores brigavam contra a sistematização do conteúdo e ator era sinônimo de marginal. Mesmo assim, ou talvez por isso, nunca mais deixou os palcos e suas cercanias, as salas de aula. "Leciono há 36 anos", orgulha-se a diretora de teatro. Introdutora no Brasil do método Laban de expressão corporal no currículo escolar, Eugênia aprendeu a planejar aulas e a lidar com alunos tímidos, exibidos ou indisciplinados. Hoje, é cautelosa frente a um virtuoso: "Todo educador deve fazer críticas e elogios discretos." Da mesma forma que mantém o sotaque nordestino e as convicções marxistas, Eugênia cultiva a determinação de que a arte transforma o ser humano e é fonte inspiradora da liberdade.

Educação – Quando você começou a dar aulas de teatro?
Eugênia Thereza de Andrade – Comecei com crianças, em 1967, na Escola Experimental Morumbi, em São Paulo (SP). Tive intuição e lucidez de não "psicologizar", nem transformar crianças em pequenos atores. Na época, eu não tinha nenhum fundamento, não existiam livros, tive de ir inventando. Depois, fui chamada por outra escola, dei aula em um ateliê. Descobri que havia em São Paulo uma professora que dava aula de Rudolfo Laban [1879-1958], e eu não conhecia bem o trabalho dele. Estudei seis anos e, até hoje, Laban faz parte da minha prática cotidiana. Juntei os conceitos de Laban com Stanislavski [russo, criador do método de preparação para atores].

Educação – Quais são os fundamentos de Laban?
Eugênia – Ele foi um coreógrafo húngaro, arquiteto de formação, que viveu no século


XX e tinha uma posição política bastante progressista. Laban achava que dança não podia ser uma atividade somente do dançarino. Ele estudou a essência do movimento, pesquisou trabalhos primitivos, como ceifar, cortar lenha, bordar. E observou o processo de desenvolvimento da criança, do gestual à maturidade. Pesquisou por 20 anos os movimentos de dançarinos e acrobatas, observou pessoas no cotidiano e numa linha de montagem. Ele viu que no movimento existem alguns fatores permanentes, como energia, esforço empregado, ritmo, trajetória, natureza da fluência – se é um gesto mais controlado ou mais livre. O estudo dele é revolucionário e atual até hoje.

Educação – Essa base é adequada para o trabalho com crianças?
Eugênia – Claro. Laban viu que qualquer movimento, seja o de um acrobata ou de um dançarino, é decorrência de um treino sistemático. Mas qual a diferença entre o movimento de um dançarino e um simples gesto de cortar batatas? É a maneira como a expressão e o repertório são organizados. Ele queria provar que se na ação existem esses fatores, inerentes ao gesto humano e também contidos na natureza e no animal, então, a dança não poderia ser privilégio do dançarino. Ele sistematizou todas as ações de movimento para criar procedimentos para os dançarinos, para as crianças em recreação, para quem vai fazer acrobacia e ginástica, para operários e qualquer pessoa que queira se beneficiar.

Educação – O que é mais importante: estimular na criança o contato com o teatro ou montar um espetáculo?
Eugênia – O raciocínio do dono da escola – acho que não deve ter mudado muito – era de se treinar as crianças para fazer uma pecinha no final do ano. Quando comecei a dar aulas, já disse que não faria isso. E a diretora da escola aceitou.

Educação – Como o teatro pode ajudar no desenvolvimento da criança?
Eugênia – No processo educacional, o contato com as linguagens expressivas tem um caráter lúdico, é a realização da fantasia da afetividade. Para a criança, todo mundo de quem ela gosta é bonito. As razões estéticas dela são do mundo afetivo. Já que eu dava aula, o teatro e a expressão corporal tiveram objetivos educacionais. É importante estimular a imaginação, organizar o pensamento – que é abstrato, como o teatro – e, antes de qualquer coisa, ter disponibilidade para o corpo, fazer aquilo sem o caráter de exibição ou competição.

Educação – Como foi a experiência de dar aulas de teatro durante a ditadura?
Eugênia – Eu me candidatei à Escola Experimental da Lapa. Ela foi muito importante porque resistiu à ditadura. Lá, dei aula para filhos de industriais e meninos que vinham da favela. Quando comecei um trabalho lá, os alunos já tinham aulas de expressão, além de artes plásticas e música. Mas a diretoria tinha decidido que ou alguém fundamentava aquilo ou eles tiravam as aulas. As escolas não eram obrigadas a seguir o currículo da Secretaria, elas faziam o próprio currículo. E o que estava sendo dado na Experimental da Lapa era algo de muita liberdade, mas de uma liberdade equivocada, um laissez faire [deixe fazer]. Não havia livros de teatro para a educação. Fui observar a atividade ali mesmo e sistematizar. Na Experimental da Lapa, teatro tinha prestígio, eu tinha carga horária igual a português e matemática.

Educação – Como você avaliava os alunos?
Eugênia – A promoção dos alunos não era por nota, eram conselhos que decidiam. Precisei de ajuda para me organizar, achava que não era possível sistematizar o conteúdo. É uma limitação que nós, artistas, temos, de achar que com planejamento não tem criatividade, já que tudo tem de ser espontâneo. Destacaram uma pedagoga muito capaz para me ajudar a organizar e sistematizar. Foi ótimo, virei professora de arte, sei fazer planejamento. No começo, fiquei com receio, mas ela falou: "Eugênia, seu trabalho é valioso, eu não vou mexer." Tenho tudo documentado.

Educação – O contato com a arte na escola é uma necessidade ou uma opção?
Eugênia – Acho que arte, literatura, história, música são necessidades vitais. Não é para ocupar o tempo, ser um enfeite ou, como dizem pais e educadores, "cabeça vazia, oficina do demônio". Os pais me procuravam no estúdio dizendo: "Quero que meu filho fique ocupado, sem tempo livre, é para gastar energia." Isso é uma visão muito tosca do ser humano. Uma pessoa precisa ter tempo livre. Para fazer o quê? Nada. Para ficar pensando. Mas daquele tempo para cá mudou muito o comportamento das crianças. Eu nunca tinha visto criança ansiosa. Hoje é comum. Muitos pais colocam um excesso de atividades para os filhos, mas não vejo melhora.

Educação – Há crianças que não gostam de teatro?
Eugênia – Muitas. Existem várias formas de expressar esse não querer: excesso de timidez, negação, agressividade. Sempre tive uma postura de não usar recursos de sedução. Uma criança com um mínimo de saúde mental não aceita, mesmo que seja criada em um ambiente de chantagem. Não é bom nem pressionar, nem seduzir. Assim, a criança vai participar de alguma maneira. Não se participa só fazendo. Ela vê, num determinado momento dá opinião, em outro, sorri; depois, você chama para colar um papel. Quem dá aulas para criança tem que ter a capacidade de dispor de si para entrar em contato com o outro. No mesmo nível.

Educação – Como se identifica em uma criança o talento para teatro?
Eugênia – Talentosa é aquela pessoa que destoa, que tem respostas originais, seja nos gestos, no que ela fala ou nas soluções que ela dá. É papel do educador não colocar expectativa sobre essa criança. Acho que todo educador deve fazer elogios discretos e reprovações discretas. Esse é o segredo para se desenvolver uma atividade expressiva. É um ambiente não competitivo, de aceitação. Tem que haver aquele espaço no qual o indivíduo não aceita porque é bonitinho aceitar, não é uma coisa caridosa. Também é preciso lidar com as competições que surgem, as necessidades de afirmação.

Educação – Como trabalhar o estímulo, então?
Eugênia – Quando você reforça o elogio para aquele que é criativo, você planta uma semente de estereotipia. Porque existe na criança o desejo de que, ao se expressar, ela seja amada, que é o desejo do homem. Se você elogia em excesso, ela passa a repetir aquilo. Isso é comum, com desenho, por exemplo. A família diz "que bonito que você fez". Para ser aceita, então, a criança começa a repetir aquele desenho. O elogio é necessário, mas é preciso conversar também com aquele que teve dificuldade. Os meus alunos que tinham mais talento não foram os que, necessariamente, seguiram carreira artística. Existem pessoas muito criativas que fazem coisas com intenção de serem lúdicas, de brincadeira. Sem o caráter de exibição.


Educação – É difícil lidar com a timidez das crianças?
Eugênia – É muito mais fácil dar aula para uma pessoa tímida. Eu adoro. A timidez não é defeito, é uma característica de personalidade. A maioria dos tímidos é expressiva.

Educação – Muitas crianças querem ser artistas, não por vocação, mas atraídas pela expectativa de fama e sucesso.
Eugênia – Acho isso uma tragédia. Veicula-se um modelo que diz que ser artista é uma coisa fácil, não é um ofício. Identifica-se talento como uma desinibição, como uma capacidade de se expor com facilidade, quase uma não-vergonha, um despudor. É gravíssimo. A busca da fama a qualquer preço é uma deformação que me preocupa. Meninas posam nuas e acham que isso é um trabalho artístico como outro qualquer. Precisa aparecer alguém, com suficiente clareza, lucidez e coragem para dizer: "Não é artístico, se você quer tirar a roupa, tire. Agora, você ficar com a genitália de fora não vai te ensinar a fazer Ofélia [personagem de Shakespeare]". Se num filme ou numa peça é preciso ficar nua ou fazer uma cena de sexo com violência, você está fazendo um papel. Eu acho que o exercício de ser artista, principalmente no teatro, exige muita lucidez. Quando um pai me encaminha seu filho porque está passando mal, eu primeiro encaminho o garoto para terapia.

Educação – O que motiva esse apelo pelo sucesso rápido e a qualquer preço?
Eugênia – Eu quis ser professora porque, para mim, era um trabalho de muito prestígio. Hoje, com um salário desses, que criança quer ser professora? Ela quer ser apresentadora de TV, ficar rica, ter carro, ser loira – todos são loiros. É tão grave, que meninas se submetem a cirurgias plásticas, verdadeiras mutilações da alma, no desespero de atingir um corpo idealizado pela mídia. É um país que tem uma crise de identidade muito grande.

Educação – É possível trabalhar com alunos indisciplinados?
Eugênia – Eu dava aulas numa escola de freiras "modernas". Existia uma madre, muito repressora, que colocou teatro porque fazia parte do que ela julgava ser moderno. Eu dava aulas na educação infantil e um dia cheguei para fazer bichos. Conversava com cada uma das crianças, perguntava de que bicho elas gostavam, se já tinham ido ao zoológico, a um sítio, se conheciam os bichos de desenhos e fotografias. Elas imaginavam o que dizia o bicho, depois imitavam, descreviam sentimentos. Tinha um menino, o Andrezinho, que era um terror. Na hora de escolher o bicho, ele disse: "Eu quero fazer um caralho." Sentei bem perto dele, as crianças riam porque sabiam que era um palavrão. Eu disse: "Andrezinho, me diga, seu caralho é de que tamanho?" Ele disse: "Ah, tia, o meu é assim, tipo uma onça." Fui construindo o bicho com ele. Quando fomos colocar os bichos em seu habitat, perguntei: "O seu caralho vai habitar onde?" Ele disse: "Oh, tia, não quero mais que ele se chame assim."

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